
Por João Roberto Ripper
Le Monde Diplomatique Brasil
A Escola de Fotógrafos Populares, sua agência e o banco Imagens do Povo são experiências do Observatório de Favelas. A escola pretende formar jovens moradores de favelas cariocas no ofício da fotografia e abrir-lhes caminho no mercado de trabalho. Mais do que isso: a escola busca realizar um trabalho de registro das comunidades populares a partir do olhar dos próprios moradores, além de difundir outras possibilidades de percepção dos espaços, distinta do olhar tradicional, marcado por sensacionalismo, pobreza e violência.
Para entendermos a importância desses projetos, que funcionam em conjunto com diversos outros do Observatório de Favelas, é importante pensarmos alguns conceitos. Entre eles, o de que os moradores das áreas populares vivem precariamente e são submetidos à dominação econômica e cultural das classes média e alta. Essa forma de exploração começou a se intensificar nos anos 1940, por ocasião do surgimento das primeiras favelas, e vem se exacerbando desde então. Uma de suas expressões é o conceito de “cidade partida”. De um lado, a cidade onde é formal e lógica a inclusão. De outro, a cidade da exclusão. A pobreza nas metrópoles, genericamente falando, não vem apenas dos salários baixos e dos empregos precários. A pobreza é resultante do reduzido acesso aos bens e serviços urbanos, tais como habitação, educação, saúde, segurança, entre outros. Falamos, portanto, de direitos à cidade que não foram respeitados e contemplados para todos os seus habitantes.
Valorização da participação popular
Segundo Diógenes Pinheiro, doutor
Assim, nesses discursos, a cidadania aparece, ou reaparece, como algo a ser doado “por uma elite iluminista, que vai à favela com seus projetos emancipatórios prontos e não vê o morador de espaços populares como um parceiro social, mas sim como alguém a ser trazido para o mundo da civilização, da cidade e seus valores. Sendo assim, um projeto de cidadania que não reconhece nas estratégias e nos estilos de vida desenvolvidos nas favelas nada de positivo”, afirma.
Existe uma desqualificação moral do outro, daquele que é diferente, no sentido de não repartir necessariamente os valores burgueses dominantes, traduzindo-se numa visão sobre os pobres em geral e os favelados
De sua parte, o poder público se apresenta de forma diferenciada diante do cidadão morador das favelas e daquele que habita a “cidade formal”. A discriminação aparece até nos projetos urbanísticos, ecológicos e sociais. Não se limpam praças de favelas com o mesmo empenho que são limpas as praças da zona sul, e a polícia age de forma totalmente diferente nos bairros nobres e nas favelas.
Há, na verdade, diversos graus de cidadania experimentados por quem ocupa posições assimétricas no território da cidade. Mas é importante destacar que, muitas vezes, a favela representa um projeto de cidade mais humano. Tomemos como exemplo a alta sociabilidade vista nas comunidades populares, onde quase todos os vizinhos se falam, onde há mais solidariedade nos momentos de dificuldade. Muitos economistas costumam se referir a essas comunidades como de “baixa renda”. Pergunto: por que insistir em defini-las sempre pelo negativo, pelo que não têm, por que não se referir a elas como comunidades de alta sociabilidade? A favela tem muito a dizer à cidade, basta ter abertura intelectual e afetiva para perceber isso.
Talvez por isso, os moradores das favelas cariocas teimem em não integrar uma ‘cidade partida’ e comungam inúmeras vezes os mesmos espaços da classe média formal. Para Diógenes Pinheiro, isso ocorre, por exemplo, nas festas. Há uma vocação para a felicidade nesta cidade que é única: a praia, a sensualidade, a beleza estão presentes e são pontos de encontro entre o morro e o asfalto. Os jovens, nas suas múltiplas tribos, são também um canal forte de ligação entre realidades e grupos diversos.
Hoje, as comunidades populares são palco de inúmeros movimentos e de diversas intervenções, seja de grupos locais, do Estado ou de organizações não-governamentais, todos voltados para atender suas principais demandas. No entanto, muitos projetos urbanos desconhecem que as comunidades querem ter atendidas as demandas de primeira, segunda e terceira ordem. Como necessidades de primeira ordem estão a habitação, água, luz e o saneamento, seguidas de saúde, educação e direitos. Finalmente, vêm as questões de gênero, racial, de identidades.
“Só um projeto articulado pode promover mudanças efetivas.” Dentro desse espírito, o projeto da Escola de Fotógrafos Populares funciona com 4 horas de aulas diárias. É fotografia de segunda a sexta-feira. Diferentemente de vários outros cursos, a escola substituiu o laboratório tradicional pelo ensino, por exemplo, da utilização do software Photoshop e suas formas de tratamento de imagem, além do manuseio de programas de gerenciamento de banco de imagens. Dessa forma, os fotógrafos que se formam e optam pelo documental podem colocar a edição de seus trabalhos na agência Imagens do Povo.
A Agência Escola de Fotógrafos Populares pretende trabalhar para que a fotografia seja um instrumento de arte, informação e de formação colocado a serviço do resgate da dignidade das classes populares e da ampliação dos direitos humanos. Trabalha com alunos vindos de várias comunidades e favelas. Tem também alguns estudantes da UFF (Universidade Federal Fluminense) e da UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro). Esse intercâmbio é fundamental.
O projeto parte da ideia de que democratizar a fotografia é derramar um olhar humano sobre a sociedade. Isso será feito através da produção e da difusão de imagens da realidade brasileira, especialmente das populações mais pobres que vivem nas periferias das grandes cidades, a partir do olhar dos próprios moradores desses espaços.
Direitos humanos
O sensacionalismo, a pobreza e a violência que caracterizam o olhar tradicional sobre as comunidades populares estão longe de dar conta da riqueza da experiência cotidiana vivida nesses espaços. Cabe, portanto, enfatizar também os sentimentos, os sonhos, o trabalho, o lazer, a diversão, a dor e a alegria. Enfim, a capacidade que as classes populares demonstram, cotidianamente, de resistir e persistir, de fazer da vida uma arte marcada por culturas e práticas diversas, mas que têm em comum a dignidade e a solidariedade.
O pano de fundo do projeto é discutir na sociedade e, principalmente, entre os moradores dos territórios populares, a comunicação e, portanto, a fotografia como um direito humano fundamental. Como diz o artigo 19 da Declaração Universal dos Direitos Humanos, todas as pessoas têm o direito de investigar a informação que desejam e de divulgá-la, sem sofrer censura, usando para isso de quaisquer meios.
Falamos, portanto, de dois grandes direitos: um universal e um individual, de todas as pessoas exercerem a comunicação, e o outro dos jornalistas profissionais. Um direito não pode ser censor do outro. Principalmente quando a comunicação contribui para estigmatizar e aumentar a violência nas favelas, nas áreas rurais e indígenas, nos espaços quilombolas. As comunidades têm de parir a própria comunicação para que sejam conhecidas em sua essência. Afinal, se não se divulga, se não se mostra, não se existe no conhecimento e no imaginário popular. Vivemos um momento em que a beleza das favelas, das comunidades rurais, dos sem-terra, dos quilombolas e dos índios está censurada, não é mostrada.
Mostrar o belo dessas pessoas e o bonito de suas lutas, para ajudar a sociedade dominante e a classe média a olhar com os óculos da dimensão da inclusão, da beleza e do fazer, é tão revolucionário quando denunciar as injustiças que esse povo sofre. A segregação começa na proibição de se mostrar o belo, a dignidade, a solidariedade, a vida em sua essência.
*idealizador do Projeto Agência-Escola Imagens do Povo.
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