domingo, 26 de julho de 2015

“Autonomia é vida!”


Assim me respondeu uma adolescente da comunidade de San Isidro de la Liberdad, em Chiapas, México, quando perguntei sua definição para palavra que representa a luta deste povo. Resposta singela, mas ajudou-me esclarecer um conceito que perseguia em vários livros, autores e correntes teóricas do anarquismo italiano ao marxismo dos sovietes.
Assim como nossas vidas são um constante processo de aprender a nos autogerir, a organização social das pessoas deve buscar construir seu autogoverno, autodeterminação, autodefinição e sustentabilidade deste o dia-a-dia. Autonomia se constitui hoje uma alternativa política das oligarquias liberais (C. Castoriades), que equivocadamente chamamos de democracia representativa, da qual perece pela falta de credibilidade e legitimidade (M. Castells). A delegação de poder a um grupo ou partido não só possibilita alargar a distância entre os discursos eleitorais e o governo como distancia as pessoas da cidadania, compreendida aqui como a coresponaabilidade e a participação irrestrita nas decisões sobre a vida pública. 

As comunidades são autônomas, fenômeno fortemente vivenciado nesta região mexicana, não só porque possuem seus próprios governos, leis, sistemas jurídicos, produtivos e educativos locais.  Autonomia é construir a participação de todos e todas no cotidiano da vida comunitária. É a prefiguração do saber-fazer (J. Holloway). "Não queremos ser representados, mas reconhecidos", assim o filósofo hispano-colombiano Jesus Martín-Barbero define o princípio destes movimentos. Reconhecimento significa inclusão não só jurídica, mas também política e afetiva (A. Honnet).

Esta cultura política está enraizada na própria organização comunitária. Em San Isidro de La Liberdad, por exemplo, as manhãs de domingo não são caracterizadas pelo lazer, bebedeira ou descanso. São marcadas pela assembleia que só tem hora para começar. Por horas, são debatidos temas relativos à vida comunitária, como a escola, as plantações, a segurança, a rádio comunitária e as participações em eventos promovidos por outras comunidades autônomas. Todos e todas têm o direito à palavra idosos, crianças, mulheres, jovens e homens. As discussões só terminam quando acordos são construídos. Em 18 anos de existência, nunca foi necessária uma votação.

A construção da autonomia, no entanto, não é uma dádiva. É um processo de luta e uma conquista. San Isidro de La Liberdad surgiu de uma cisão, em 2007, na localidade indígena da etnia tsotsil, oficialmente pertencente ao município de Zinacatán, situado há 12 km de San Cristóbal de Las Casas, principal cidade da região de Los Altos no Estado mexicano de Chiapas. No entanto, antes desta cisão, uma primeira insurgência inspirada no zapatismo, aconteceu contra a comunidade originária, Chajtoj. Após o levante do Exército Zapatista de Libertação Nacional (EZLN) em 1994, um dos jovens à época, engajado no movimento social da Teologia da Libertação e vocacionado a ser sacerdote dominicano, conhecido hoje como Dom  Mariano decidiu conhecer mais um pouco sobre o zapatismo participando de um encontro em Oventik, em 1994. Ele compreendeu que o levante de 1º de janeiro de 1994, realizado pelo EZLN que ocupou os prédios públicos de San Cristobal de Las Casas, Oconsingo, Las Margaritas, Altamiro, Chanal, Oxchuc e Huixtán e declarou guerra contra o Exército Federal, reivindica, conforme a Primeira Declaração da Selva de Lacandón, terra, trabalho, educação, saúde, moradia, alimentação, liberdade, independência, democracia, justiça e paz. Em defesa destas reivindicações e para evitar ampliar o conflito armado, ativistas de diversos grupos criaram uma corrente global, através da nascente internet, não só mobilizando personalidades públicas de vários países (como o escritor Eduardo Galeano e o cineasta Oliver Stone) e entidades (como a ONU e o Vaticano), mas também quebrando o boicote informativo sobre o assunto das emissoras de televisão mexicanas. As mensagens de apoio ao movimento transmitidas em faxs, e-mails, bate-papos e páginas da web, colaborou também levar mais 150 mil pessoas às ruas da Cidade do México que exigiram o fim do conflito. Diante das pressões, o conservador Governo Mexicano, que era gestado pelo mesmo partido há mais 70 anos, não viu alternativa a não ser declarar cessar fogo unilateral e iniciar os Diálogos de Paz de San Andrés. Mesmo não conseguindo o acordo desejado, as comunidades zapatistas contam atualmente com autonomia política, possuindo, além do próprio governo, sistema de saúde, escolas e meios de comunicação.

Desde então Dom Mariano e muitos de seus vizinhos criaram laços com o EZLN, formando às escondidas uma base de apoio ao movimento em sua localidade, o que enfureceu, segundo ele, o cacique local, obrigando-os a criar suas próprias autoridades e desmembrar-se de Chajtoj em 1996. A comunidade de San Isidro, com cerca de 150 famílias, permaneceu aderente ao zapatismo até 1997, quando tiveram parte de suas lideranças cooptadas pelo Governo Estadual. Por isso, as famílias contrárias a essa adesão, cerca de 87, decidiram se tornar autônomas, construindo uma nova comunidade, San Isidro de La Liberdad, que não possui território contínuo, pois há famílias pertencentes a esta que são vizinhas das outras comunidades Chajtoj e San Isidro.

Há, no entanto, um centro dos autônomos que possui um prédio de madeira e alvenaria onde se situa o salão de reunião, uma cozinha comunitária, um quarto para abrigar convidados e uma sala atualmente servindo para as aulas da escola secundária. Há, neste centro, outro pequeno prédio no qual está o centro de saúde e uma terra comunal em que se criam caprinos e se plantam algumas culturas para investimentos na comunidade. O local fica no centro geográfico da comunidade, permitindo uma proteção maior do patrimônio coletivo pelas famílias autônomas que o rodeiam.

Segundo Juan, professor da escola primária da comunidade, o prédio onde funciona o Centro dos Autônomos foi construído por ele quando era catequista para ser uma espécie de salão paroquial para as reuniões e celebrações. Com a cisão, foi doado para os autônomos que o ampliaram. Apesar da localidade possuir duas capelas de médio porte, os autônomos não frequentam as mesmas, ainda que sejam católicos, pois estão controladas por seus adversários de Chajtoj e San Isidro. Assim, realizam semanalmente sua liturgia da palavra na sala de reunião dos autônomos e eventualmente missas com algum sacerdote ligado à linha mais progressista da Igreja Católica.

A autoridade da comunidade é formada por dois casais eleitos para um mandato bienal, até hoje sempre por acordo, pela assembleia da qual podem participar todos os autônomos. Conforme Dom Mariano, para conseguir o acordo fundante da comunidade e evitar maiores conflitos, San Isidro de La Liberdad não é formalmente aderente ao zapatismo, apesar das famílias mais simpatizantes participarem das diversas atividades do movimento e apoia-lo sempre que possível e necessário, como na organização de eventos.

A economia da comunidade está baseada principalmente no plantio do milho e feijão. Como estão localizados em montanhas, que, além do relevo acidentado, faz muito frio dificultando o desenvolvimento das culturas, as famílias alugam um terreno, chamado de Tierra Caliente, na capital Tuxtla Gutierrez, que mesmo distante pouco mais 50 km de San Isidro de La Liberdad, possui clima totalmente diferente, tropical úmido com chuvas concentradas principalmente no verão. Nesta época, os homens ficam semanas na localidade semeando que quatro meses depois são colhidas.

O maior conflito entre a comunidade de Chatoj e San Isidro de La Liberdad aconteceu em 2010, quando os autônomos, tendo seus filhos sem escola e estudando improvisadamente em seu Centro, decidiram tomar a escola oficial. A ação resultou numa luta corporal deixando quase todos os homens das duas comunidades feridos. Um acordo, mediado pela Prefeitura de Zinacatan, doou a Escola para os autônomos e o prédio da administração na localidade se tornou a Escola da comunidade oficial. A educação é prioridade da comunidade que com a ajuda internacional, possui não só o ensino básico, como também o médio. Através da educação, San Isidro de La Liberdad busca avançar na autonomia com uma participação cada vez mais consciente e lúcida.

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