quarta-feira, 26 de outubro de 2016

O autoritarismo da crença no mérito no campo acadêmico

Ernesto Laclau e Chantal Mouffe desenvolvem a teoria do agonismo político

Por Ismar C. Costa Filho

A formação de relações e discursos que conduzem e predominam num meio social é inevitável para a existência de qualquer grupo. Assim Ernesto Laclau e Chantall Mouffe atualizam a teoria gramsciana, aplicando-a muito além das lutas entre burguesia e trabalhadores. A hegemonia permeia os grupos sociais, inclusive aqueles que lutam contra a opressão dos dominantes, porque o conflito é estruturante de qualquer relação política, dado que as diferenças são inevitáveis e para acomodá-las de alguma forma, mesmo que circunstancialmente, acordos são construídos a partir de versões que passam a significar e guiar, predominantemente, uma realidade. Desta maneira, a hegemonia está também nas relações políticas dentro dos sindicatos, dos coletivos de gênero, dos assentamentos, das associações de bairros, das comunidades autônomas... e também das universidades, por mais heterogêneas sejam as diversas correntes de pensamento que transitam e gestam estes espaços.

A aparente tolerância ao diverso, nestes grupos, pode obscurecer não só os conflitos intransponíveis, como sorrateiramente naturalizar e legitimar valores dominantes. No campo acadêmico, que inclui universidades, faculdades, sociedades de pesquisadores, grupos de pesquisa, órgãos de fomento..., a meritocracia, sem dúvidas, cumpre o papel de ser o discurso hegemônico, fazendo circular e assentar repertórios e ações que justificam privilégios e realizam exclusões-inclusões. Baseada na crença de que se conquista o mérito e se ascende profissional e socialmente pelo esforço e dedicação individuais, este discurso vela não só as desigualdades estruturantes, que nunca vão permitir equânimes resultados e reconhecimentos, como também controla os critérios de seleção e ascensão no campo acadêmico. Por detrás das provas de concursos e dos critérios de progressão, por mais transparentes, públicos e de boa fé, está a crença na justeza de avaliações baseadas, muitas vezes, em quantificações do inquantificável e rotulações subjetivas apresentadas como objetivas. E para agravar, estes processos atendem ainda demandas geradas em ambientes de urgência, de falta de recursos e até de narcisismo. Grades curriculares, programas de linhas de pesquisa e critérios de seleção são gerados, várias vezes, a partir de fundamentações baseadas em ilações (internamente plausíveis) de pensamentos que pouco dialogam com as pessoas que se formam profissionalmente ou são atendidas por estes profissionais. Neste caldeirão, na menos pior das hipóteses, a crença no falso mérito exclui, a partir de títulos, publicações, currículos..., e o aleatório dos sorteios de pontos de programas esquizofrênicos "inclui" e vice-versa.


Um dos caminhos possíveis para começar a reverter a situação pode ser as reflexões apontadas por Laclau e Mouffe e pelos conhecimentos situados localmente. O primeiro passo pode ser reconhecer e dar transparência e evidência aos conflitos. Isto significa aclarar e visibilizar, no ambiente acadêmico, os questionamentos e os dissensos sobre a mobilidade social e profissional baseada no mérito. A partir desta clareza, reconhecer que as adversidades não devem significar a destruição do oposto, mas a construção de acordos (nunca o cinismo de consensos) que busquem humanizar os processos seletivos, reconhecendo que o papel dos mesmos não pode ser só a exclusão, mas deve ser predominantemente diversos tipos de inclusão e criando critérios distintos para reparar as injustiças estruturantes (políticas afirmativas). Desta maneira, poderemos começar a compreender que a universidade não é espaço só para a performance, a eficiência, a assertividade e a eficácia da Ciência, mas espaço de vivências e convivência que possam, através das ciênciaS, gerar pertencimentos, laços, afetos, tolerância, solidariedade, construções coletivas, empoderamento e justiça social, mesmo nos inevitáveis conflitivos e que possa produzir a improvável pulverização das hegemonias.

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