sábado, 17 de outubro de 2015

Desabafos de um etnógrafo

Talvez seja algo muito contraditório falar em desabafos de um etnógrafo porque desabafos são atitudes pessoais e, por vezes, egoístas. Etnografia, ao contrário, é um deslocamento e uma relação com outros. Mas inevitavelmente uma relação consigo mesmo também. Negá-la pode ser não só uma ingenuidade, mas talvez uma irresponsabilidade. Por mais que busquemos textos objetivos, compartilhados, coletivos... o nosso “eu” está sempre presente, desconsiderá-lo ou oculta-lo é transferir ou travestir nossas condições nos outros. Para chegar até este texto foi não só uma decisão, mas um caminho difícil. Não só para despir-me da segurança da terceira pessoa, porém para expor-me dentro de uma referência que me dê segurança de permanecer no ethos acadêmico.

Certamente, no final de minha pesquisa de doutorado, fazer uma disciplina de Metodologias, durante o intercâmbio no Centro de Investigaciones y Estudios Superiores en Antropologia Social del Sureste de México (Ciesas Sureste) foi-me fundamental para esta autorreflexão. Tardiamente, esta matéria me pareceria algo completamente intempestivo, entretanto não o foi, principalmente, por quatro textos que causaram uma forte projeção na minha identidade pessoal e acadêmica. Cultura y Verdad de Renato Rosaldo me tocou não só por ele defender que a força das emoções deve ser observada na etnografia tanto quanto os mecanismos simbólicos da gestão dos comportamentos, mas também por todas suas experiências relatadas. Sim, minha pesquisa já partia deste pressuposto: mais do que a racionalidade, sentimentos são fundamentais na tomada de decisões sociais. No entanto, o autor vai além, ao mostrar como chegou a esta conclusão, narrando sua investigação nos inglots, uma tribo filipina conhecida por permitir a alguém que perdeu um ente querido cortar a cabeça de outrem. Sem dúvidas, nos parece não só estranho, mas bastante cruel este comportamento. Para ele e para os outros investigadores que lá estiveram, também. O que resultava em discrições densas tão somente dos rituais. Até quando Rosaldo, sentiu, durante a investigação, em sua própria pele, o que os inglots sentiam quando perdiam seus entes queridos e iam à caça de cabeças. Numa trilha para o campo da pesquisa, sua companheira e esposa despencou de um desfiladeiro e, ao encontrar seu corpo inerte e sem vida abaixo do abismo, ele já não conseguia respirar direito, não achava chão e tudo parecia completamente sem sentido. Ele viveu a aflição da ira. Este sentimento se transformou na categoria para compreender a caça de cabeça muito além de um simples ritual. As culturas são inevitavelmente compostas por muito mais do que de símbolos e representações. São controles ou organizações sociais das emoções.

Na minha pesquisa de doutorado, as tragédias e os traumas não só me marcaram como também foram vivências cotidianas, tão difíceis e duras quando os processos de exploração e significação do trabalho. A dor da aflição me marcou, em outubro de 2012, quando senti a perda de um amigo-irmão que morreu precocemente aos 45 anos. Não me adiantava buscar respostas ou consolação, as memórias eram fortes e instransponíveis. Quanto rock tínhamos escutado, quantas cervejas tínhamos brindado, quantos quilômetros percorremos em nosso Estado e no Brasil na luta pela democratização da comunicação, quantas risadas compartilhamos, quantas palavras falamos em reunião, quantos cursos e oficinas ministramos... e tudo tinha se transformado somente em passado. Já não havia nada mais para retroceder ou mudar. Não podíamos planejar nada, ainda que outras vezes tenha realizado o mesmo sozinho e com outros companheiros em sua homenagem. Não foi nada fácil porque já tinha deixado minha cidade para cursar disciplinas do doutorado; porque tinha deixado um bom emprego de professor para se torna estudante profissional com quase 40 anos de idade; porque estava numa cidade que me parecia totalmente hostil, longe das praias, dos bosques e dos sertões, sem companhias, me sentindo triste e abandonado. Se tudo já não bastasse para compreender a ira da aflição, ao regressar para minha terra, a fim de recomeçar minha vida, minha esposa decidiu unilateralmente separar-se em janeiro de 2013. Não era só 15 anos de uma relação que se acabavam, mas era também minhas rotinas, meu cotidiano e meus planos que se dilaceravam assim de repente, deixando-me completamente sem chão. Mais do que saudades dela, sentia falta do que fazíamos juntos e por mais buscasse refazer, o presente nunca mais se identificaria com o passado.

O segundo texto que me marcou foi “Diarios de campo en Melanésia” do clássico antropólogo Malinowski. Bem mais forte do que a pioneira etnografia que ele havia registrado nos Argonautas do Pacífico, seus diários, publicados depois de sua morte e com o consentimento somente de sua esposa, revelaram seu estranhamento e até repulsa com a cultura investigada, suas saudades, angústias e desejos (inclusive pelos corpos desnudos de seus investigados e investigadas), causando espanto no cinismo intelectual criado por detrás da defesa do relativismo, da alteridade e da diversidade. Meus diários certamente não são menos “infames” do que os de Malinowski. Sim, a repulsa pela cultura pesquisada me é inevitável. Depois de quatro anos de idas e vindas, com estadias entre 1 a 5 meses, em Chiapas, México, não suporto mais meu campo de investigação; o medo que assombra uma guerra suja e encoberta que motiva o prestígio e as razões de ambos os lados; as decisões de assembleia que impõem acordos de lideranças mais esclarecidas para maiorias; a autonomia zapatista que, muitas vezes, justifica relações somente com quem lhes convém; os cafés que perambulo todos os dias; o jeito “simpático” e fechado com cheiro de falsidade que paira em muitas das relações pessoais com os mexicanos; a constante solidão que me acompanha; a falta de identificação nas conversas; as tentativas de falar uma língua que nunca vai ser a minha... Tudo isso me enche a cabeça de questionamentos retóricos, os quais já tenho respostas. Para estudar outras culturas, preciso negar a minha ou transformá-la? Um etnógrafo não tem sua própria cultura? Há cultura sem divergência das outras? Há identidades sem sinais diacríticos?

Os diários de Malinowski me ensinaram que para compreender e respeitar o diferente, não devemos aderi-lo e aceita-lo cega e falsamente. Lembraram-me também dos ensinamentos da politicóloga britânica Chantal Mouffe que os choques e os conflitos são inevitáveis. Para romper a couraça do cinismo, que, por vezes, transforma nossas pesquisas e posições políticas em discursos hipócritas, precisamos ter transparências e buscarmos os acordos com a humildade de que não vamos persuadir a ninguém nem devemos nos convencer. Que vamos tão somente criar espaços de tolerância e coabitação. Por isso, acordos são decisões transitórias e temporárias.

Por fim, este aspecto político da pesquisa me foi possível refletir nos textos “Conecimentos Situados” de Donna Haraway e “Lutas Muchas Otras” de vários autores mexicanos sobre a pesquisa com povos originários. A investigação científica não é só uma disputa entre diferentes visões e linhas de pensamentos, que, em muitos casos, se matam por migalhas acadêmicas, mas também uma relação política entre pesquisador e pesquisados, uma constante negociação de acordos, nos quais podem chegar também a dissensos. Como afirma Haraway, “todo conhecimento é uma condensação num terreno de poder agonístico”. Há conflitos inevitáveis entre “sujeito e ‘objetos’” de uma pesquisa. Como organizar essa relação?

Primeiramente reconhecer que pesquisa é inevitavelmente uma intervenção que, além de construir significados num discurso (um livro ou um artigo de pouca utilidade para povos originários e pobres pouco alfabetizados, como explica Andrés Aubry), pode transformar realidades com a troca de conhecimentos, com o intercâmbio de saberes, com a aplicação de teorias na prática e com a mudanças das teorias pelas práticas. Como afirmar Aubry no texto “Otro modo de haber ciencia" deste último livro, “sem regresso ético (a pesquisa) se torna indignamente extrativa – tirando matéria-prima de uma mina – sem benefício para quem a proporcionaram”. Assim como este sociólogo francês, atuou numa pesquisação para a tradução coletiva dos acordos de San Andrés nas línguas indígenas, também mesmo antes de qualquer reflexão teórica, busquei um intercâmbio com as rádios zapatistas investigadas no meu doutorado.

Tentei propor um intercâmbio de conhecimentos entre minha experiência de ativista de rádios comunitárias no Brasil desde 1996 com a Rádio Rebelde. Apesar de três idas no Caracol Resistência e Rebeldia pela Humanidade em Oventik, não consegui sequer apresentar minha proposta. Ao contrário, sofri com tratamentos hostis dos zapatistas, como o impedimento de participar da Escolita porque cheguei com três horas de atraso devido os retardos nos diversos voos que tomei desde o Brasil. Assim também desabafou outra amiga doutoranda que tentou investigar o mesmo tema: “somos tratados como espiões, quando queremos somente ajuda-los e reconhece-los”. Qual deve ser a reação de um etnógrafo diante de um conflito como esse? Ter sangue frio, e talvez cheio de falsidade, e dizer: “eles têm sua própria razão, mesmo que não compreendamos”. Existe razão sem mútua compreensão? Obviamente, tenho de separar o “joio do trigo”. Tenho de saber que os zapatistas avançam significativamente na construção de uma sociedade verdadeiramente democrática, coletiva e autônoma, com uma comunicação que irradia esta mensagem vivida. No entanto, não podemos negar e calar-nos que lhes faltam muito nas relações externas, inclusive com a academia que em momentos cruciais (divulgação dos conflitos em Chiapas, acordos de San Andrés, Marcha da Cor da Pele, La Sexta...) lhe serviu de apoio. Autonomia não pode ser confundida com um isolamento ou com relações somente quando lhes convém tirar proveito. Como lembra o filósofo grego, Cornelius Castoriades, autonomia é uma construção lúcida quando temos de ter consciência que só a alcançamos quando souber construir articulações, relações precárias e temporárias,que possibilitam a inevitável vida em sociedades nossas e outras. Não podemos deixar o medo nos paralisar, nem muito menos nos isolar porque assim a guerra suja e de terror nos terá vencido.

Um comentário:

  1. Belo texto, Ismar!
    Eu sei que sua trajetória no doutorado não tem sido fácil... muitas agruras na vida pessoal e na investigação de campo. Mas os resultados serão a recompensa e, depois, novos caminhos se abrirão. Confie!
    Um abraço,
    Angela

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