Talvez seja algo muito contraditório falar em desabafos de um
etnógrafo porque desabafos são atitudes pessoais e, por vezes, egoístas.
Etnografia, ao contrário, é um deslocamento e uma relação com outros. Mas
inevitavelmente uma relação consigo mesmo também. Negá-la pode ser não só uma
ingenuidade, mas talvez uma irresponsabilidade. Por mais que busquemos textos
objetivos, compartilhados, coletivos... o nosso “eu” está sempre presente,
desconsiderá-lo ou oculta-lo é transferir ou travestir nossas condições nos
outros. Para chegar até este texto foi não só uma decisão, mas um caminho
difícil. Não só para despir-me da segurança da terceira pessoa, porém para
expor-me dentro de uma referência que me dê segurança de permanecer no ethos acadêmico.
Certamente, no final de minha pesquisa de doutorado, fazer
uma disciplina de Metodologias, durante o intercâmbio no Centro de
Investigaciones y Estudios Superiores en Antropologia Social del Sureste de
México (Ciesas Sureste) foi-me fundamental para esta autorreflexão.
Tardiamente, esta matéria me pareceria algo completamente intempestivo,
entretanto não o foi, principalmente, por quatro textos que causaram uma forte
projeção na minha identidade pessoal e acadêmica. Cultura y Verdad de Renato
Rosaldo me tocou não só por ele defender que a força das emoções deve ser observada na etnografia tanto quanto os
mecanismos simbólicos da gestão dos comportamentos, mas também por todas suas
experiências relatadas. Sim, minha pesquisa já partia deste pressuposto: mais
do que a racionalidade, sentimentos são fundamentais na tomada de decisões
sociais. No entanto, o autor vai além, ao mostrar como chegou a esta conclusão,
narrando sua investigação nos inglots,
uma tribo filipina conhecida por permitir a alguém que perdeu um ente querido
cortar a cabeça de outrem. Sem dúvidas, nos parece não só estranho, mas
bastante cruel este comportamento. Para ele e para os outros investigadores que
lá estiveram, também. O que resultava em discrições densas tão somente dos
rituais. Até quando Rosaldo, sentiu, durante a investigação, em sua própria
pele, o que os inglots sentiam quando
perdiam seus entes queridos e iam à caça de cabeças. Numa trilha para o campo
da pesquisa, sua companheira e esposa despencou de um desfiladeiro e, ao
encontrar seu corpo inerte e sem vida abaixo do abismo, ele já não conseguia
respirar direito, não achava chão e tudo parecia completamente sem sentido. Ele
viveu a aflição da ira. Este sentimento
se transformou na categoria para compreender a caça de cabeça muito além de um
simples ritual. As culturas são inevitavelmente compostas por muito mais do que
de símbolos e representações. São controles ou organizações sociais das
emoções.
Na minha pesquisa de doutorado, as tragédias e os traumas não
só me marcaram como também foram vivências cotidianas, tão difíceis e duras
quando os processos de exploração e significação do trabalho. A dor da aflição
me marcou, em outubro de 2012, quando senti a perda de um amigo-irmão que
morreu precocemente aos 45 anos. Não me adiantava buscar respostas ou
consolação, as memórias eram fortes e instransponíveis. Quanto rock tínhamos escutado,
quantas cervejas tínhamos brindado, quantos quilômetros percorremos em nosso
Estado e no Brasil na luta pela democratização da comunicação, quantas risadas
compartilhamos, quantas palavras falamos em reunião, quantos cursos e oficinas ministramos...
e tudo tinha se transformado somente em passado. Já não havia nada mais para
retroceder ou mudar. Não podíamos planejar nada, ainda que outras vezes tenha
realizado o mesmo sozinho e com outros companheiros em sua homenagem. Não foi
nada fácil porque já tinha deixado minha cidade para cursar disciplinas do
doutorado; porque tinha deixado um bom emprego de professor para se torna
estudante profissional com quase 40 anos de idade; porque estava numa cidade
que me parecia totalmente hostil, longe das praias, dos bosques e dos sertões,
sem companhias, me sentindo triste e abandonado. Se tudo já não bastasse para
compreender a ira da aflição, ao regressar para minha terra, a fim de recomeçar
minha vida, minha esposa decidiu unilateralmente separar-se em janeiro de 2013.
Não era só 15 anos de uma relação que se acabavam, mas era também minhas
rotinas, meu cotidiano e meus planos que se dilaceravam assim de repente,
deixando-me completamente sem chão. Mais do que saudades dela, sentia falta do
que fazíamos juntos e por mais buscasse refazer, o presente nunca mais se
identificaria com o passado.
O segundo texto que me marcou foi “Diarios de campo en Melanésia” do
clássico antropólogo Malinowski. Bem mais forte do que a pioneira etnografia
que ele havia registrado nos Argonautas do Pacífico, seus diários, publicados
depois de sua morte e com o consentimento somente de sua esposa, revelaram seu
estranhamento e até repulsa com a cultura investigada, suas saudades, angústias
e desejos (inclusive pelos corpos desnudos de seus investigados e investigadas),
causando espanto no cinismo intelectual criado por detrás da defesa do
relativismo, da alteridade e da diversidade. Meus diários certamente não são
menos “infames” do que os de Malinowski. Sim, a repulsa pela cultura pesquisada
me é inevitável. Depois de quatro anos de idas e vindas, com estadias entre 1 a
5 meses, em Chiapas, México, não suporto mais meu campo de investigação; o medo
que assombra uma guerra suja e encoberta que motiva o prestígio e as razões de
ambos os lados; as decisões de assembleia que impõem acordos de lideranças mais
esclarecidas para maiorias; a autonomia zapatista que, muitas vezes, justifica
relações somente com quem lhes convém; os cafés que perambulo todos os dias; o
jeito “simpático” e fechado com cheiro de falsidade que paira em muitas das
relações pessoais com os mexicanos; a constante solidão que me acompanha; a
falta de identificação nas conversas; as tentativas de falar uma língua que
nunca vai ser a minha... Tudo isso me enche a cabeça de questionamentos
retóricos, os quais já tenho respostas. Para estudar outras culturas, preciso
negar a minha ou transformá-la? Um etnógrafo não tem sua própria cultura? Há
cultura sem divergência das outras? Há identidades sem sinais diacríticos?
Os diários de Malinowski me ensinaram que para compreender e
respeitar o diferente, não devemos aderi-lo e aceita-lo cega e falsamente.
Lembraram-me também dos ensinamentos da politicóloga britânica Chantal Mouffe
que os choques e os conflitos são inevitáveis. Para romper a couraça do
cinismo, que, por vezes, transforma nossas pesquisas e posições políticas em
discursos hipócritas, precisamos ter transparências e buscarmos os acordos com
a humildade de que não vamos persuadir a ninguém nem devemos nos convencer. Que
vamos tão somente criar espaços de tolerância e coabitação. Por isso, acordos são
decisões transitórias e temporárias.
Por fim, este aspecto político da pesquisa me foi possível
refletir nos textos “Conecimentos Situados” de Donna Haraway e “Lutas Muchas
Otras” de vários autores mexicanos sobre a pesquisa com povos originários. A
investigação científica não é só uma disputa entre diferentes visões e linhas
de pensamentos, que, em muitos casos, se matam por migalhas acadêmicas, mas
também uma relação política entre pesquisador e pesquisados, uma constante
negociação de acordos, nos quais podem chegar também a dissensos. Como afirma Haraway,
“todo conhecimento é uma condensação num terreno de poder agonístico”. Há
conflitos inevitáveis entre “sujeito e ‘objetos’” de uma pesquisa. Como
organizar essa relação?
Primeiramente reconhecer que pesquisa é inevitavelmente uma
intervenção que, além de construir significados num discurso (um livro ou um
artigo de pouca utilidade para povos originários e pobres pouco alfabetizados,
como explica Andrés Aubry), pode transformar realidades com a troca de
conhecimentos, com o intercâmbio de saberes, com a aplicação de teorias na
prática e com a mudanças das teorias pelas práticas. Como afirmar Aubry no
texto “Otro modo de haber ciencia" deste último livro, “sem regresso ético
(a pesquisa) se torna indignamente extrativa – tirando matéria-prima de uma
mina – sem benefício para quem a proporcionaram”. Assim como este sociólogo
francês, atuou numa pesquisação para a tradução coletiva dos acordos de San
Andrés nas línguas indígenas, também mesmo antes de qualquer reflexão teórica,
busquei um intercâmbio com as rádios zapatistas investigadas no meu doutorado.
Belo texto, Ismar!
ResponderExcluirEu sei que sua trajetória no doutorado não tem sido fácil... muitas agruras na vida pessoal e na investigação de campo. Mas os resultados serão a recompensa e, depois, novos caminhos se abrirão. Confie!
Um abraço,
Angela