quinta-feira, 23 de fevereiro de 2017

A partilha da produção do conhecimento

O pesquisador social mexicano Jesús Galindo Cáceres aponta três etapas na produção do conhecimento científico. A primeira é o processo de exploração, que se dá no contato do pesquisador com a realidade, elaborada por fluxos de impressões e expressões e registrada em instrumentos como diário de campo, gravações, imagens e relatórios. É o momento de conexão com um mundo que deve estar além das construções simbólicas anteriormente organizadas. É uma relação conflitiva porque os pressupostos, inclusive que fundamentam a pesquisa, podem ser contrariados e as convicções, confrontadas, por isso, o investigador necessita cultivar um desapego a seu saber prévio e até a suas motivações, sabendo que só assim poderá produzir e acumular novos conhecimentos.

Através do erro e da falibilidade de experimentos e de pressupostos, como defende o realismo débil do filósofo alemão Jürgen Habermas, é possível a ciência evoluir e encontrar algo da realidade além das construções simbólicas dos pesquisadores, nas quais inevitavelmente todos estão submetidos. Nas ciências sociais, é o momento para  relacionar-se com as diferenças e divergências. O principal desafio se constitui assim em tirar a tolerância e alteridade dos conceitos abstratos para transformá-los em ações que promovam a coabitação, colaboração e solidariedade nas diversas circunstâncias da pesquisa. Aceitar o outro significa também, muitas vezes, conviver com costumes e valores contrários ao do próprio pesquisador, que para isso precisa exercitar um desapego não só de seu conhecimento, mas de sua própria cultura e crenças.

Depois desse difícil e rico momento, a etapa seguinte de descrição desafia o pesquisador a transfigurar os dados coletados em novas representações sobre a realidade. A partir da elaboração dos mapas detalhados, traçados na exploração em todas as dimensões e versões possíveis, inclusive nas contraditórias, se descreve o mundo investigado. No entanto, é um inevitável processo de desgaste quando dados são perdidos, esquecidos ou descartados. O pesquisador sempre estará diante de uma realidade muito mais ampla do que sua capacidade de nomeação. Recortes e escolhas precisam ser tomadas, mas estas ações e seus critérios devem ser transparentes, principalmente para não causar a falsa impressão que pesquisa dá conta de uma realidade muito mais vasta do que a representada. Estas seleções necessitam ainda, como na etapa anterior, cultivar o desapego de apresentar também o conhecimento que contraria os conceitos a priori, possibilitando dar clareza à inovação e ao acúmulo do conhecimento produzido.

A terceira etapa, proposta por Cárceres, é a de significação, o momento de sintetizar, configurar e teorizar as experiências vivenciadas em campo. É a ocasião da mais intensa relação de dados com os conceitos anteriores e sucessores, gestados a partir das experiências de exploração e descrição. A significação deve comprovar que a sistematização teórica é uma construção simbólica imprescindivelmente conectada à realidade investigada. É quando a comunicação científica é tecida por meio dos mais diversos relatórios de pesquisa, como teses, dissertações, monografias e artigos. Há uma dupla preocupação. Primeiro a profundidade do texto com a, mesmo que editada, diversa e vasta realidade retratada. A segunda é a compreensão de quem é o público leitor e qual o endereçamento necessário para atender suas expectativas.

Para dar conta deste mundo tão vasto e diverso relacionado a conceitos, que possibilitam uma profunda representação concatenada plasivel e logicamente nas várias capilaridades da realidade, o pesquisador, muita vezes, transgride um dos princípios fundamentais da linguagem: a clareza. A comunicação científica, por isso, constrói, muitas vezes, textos prolixos que refletem este embaraço nas frases com várias subordinações e adjetivações e nos neologismo ou metáforas dos conceitos. Mas para quem é produzida a comunicação científica? Destina-se à comunidade de especialistas da área ou aos leitores leigos? Se forem para os primeiros, é necessário compreender que este processo, denominado de difusão científica, visa não só por este conhecimento a disposição para o acúmulo em novas pesquisas, mas colocá-lo à prova e ao crivo de outros pesquisadores que, assim, poderão verificá-lo, questioná-lo, refina-lo e ou refutá-lo.

No entanto, a elaboração de uma comunicação científica voltada para a comunidade especializada exige outro momento posterior à significação que traduz para os diversos públicos, nos quais a ciência encontra não só sua legitimidade, mas seu papel social. Esta etapa, que acrescento à proposta de Cáceres, denomino aqui de partilha, podendo ser nomeada nas universidades de extensão. É composta, além da tradução ou divulgação científica, pelo diálogo entre saberes e pela distribuição ou aplicação dos conhecimentos. A tradução não é tão somente um momento de popularização da ciência (algumas vezes, confundida com a espetacularização promovida pelos meios de comunicação massivos), mas é o delicado momento de seleção de quais informações são imprescindíveis aos públicos e quais os possíveis prejuízos do descarte de dados.

É um processo compensatório quando se mede os desgastes à ciência e sua apropriação pelos variados público, que não só pode produzir benefícios sociais, mas inevitavelmente modifica os significados tecidos, algumas vezes, até subvertendo-os. Este é o irrefutável diálogo, só reconhecido quando, além da tradução e atenção à apropriação dos significados partilhados, há compreensão dos múltiplos saberes e que a ciência é, junto com a arte, o senso comum, o jornalismo e a religião, uma destas possibilidades, não necessariamente superior ou inferior,  de representação da realidade. A singularidade do conhecimento científico pode estar no compromisso que deve possuir não só de melhorar a qualidade de vida, mas que esta seja sustentavelmente distribuída aos diversos públicos de interesse que, neste processo, poderão demandar e criar condições para produção de um novo conhecimento científico mais refinado e aprofundado.

Referências:
HABERMAS, Jurgen. Verdade e justificação. Ensaios filosóficos. São Paulo: Ed. Loyola, 2004.
GALINDO CÁCERES, Luís Jesús. Sabor a ti: metodologia cualitativa en la investigación social. Xalapa: Universidad Veracruziana. 1997.

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