Depois de anos, decidi reler Paulo Freire. No início da década passada, quando fiz uma especialização em Docência do Ensino Superior, tive o primeiro contato mais sistemático com o educador brasileiro, mas restrito ao estudo de obras mais voltadas para a didática, como a “Educação como prática da liberdade” e “Pedagogia da Autonomia” que se tornaram referência para meu trabalho de conclusão daquele curso. Claro que minha relação com o educador, vem de bem antes, com as práticas do método “Ver-Julgar-Agir” no movimento pastoral e popular na década de 1980.
Mais tarde no mestrado, construindo a dissertação, me deparo inesperadamente com Freire, quando descobri que minha principal referência, Jesús Martín-Barbero, tinha sido inspirado pelas leituras do educador. Agora, num tempo marcado por profundos sectarismos retorno a leitura de Freire, com sua obra mais densa, “A Pedagogia do Oprimido”. A profundidade da escrita do educador me surpreendeu, principalmente, para um leitor acostumado com seus escritos didáticos. Os conceitos, apresentados neste livro, de horizontalizar a educação, da diferença entre radicalismo e sectarismo e da contextualização a partir dos temas geradores, além de fundamentais, continuam revolucionários. Pouco conseguimos aplica-los não só na sala de aula, mas em nossas vidas sociais e política.
No entanto, minha relação de leitura com Freire é também bem paradoxal. Além de uma repulsa ao reducionismo dialético freiriano (como se obrigatoriamente todos os fenômenos sociais, fossem desenrolados pelo trinômio tese-antítese-síntese), vejo fortes contradições no autor. Ao mesmo tempo que ele tem como princípios o papel crítico, a problematização da realidade, o diálogo e o “ser mais” , Freire apresenta um inevitável autoritarismo na defesa de suas ideias. A autenticidade, o homem como ser da comunicação e o diálogo como um encontro amoroso entre as pessoas são axiomas não questionados em sua escrita. O ser autêntico, que não é definido nem problematizado, serve de critério de reprovação ou aprovação moral de alguns comportamentos descritos. O homem como ser da comunicação e a vocação do “ser mais” são ideias jogadas sem conceitos, sem questionamentos nem oposições. Tudo isso para defender no fim a crença da superioridade e onipresença no conhecimento intelectual e de uma razão universal e verdadeira.
Comecemos a pensar pelo fim: existe um logos-razão universal único que se impõe-sobrepõe-perpassa todas as representações sobre o mundo e as culturas? Como se sustenta essa ideia, se a racionalidade é uma construção social e histórica, condicionada pelos contextos específicos, podendo ter em cada pensamento racional significados, versões, representações e posições singulares, divergentes e não relacionáveis? Tomemos o seguinte exemplo, adaptado a partir do livra “A ideia de Justiça” de Amartya Sen. Três crianças disputam a posse de uma flauta, compartilhada durante uma temporada de férias. Como vão regressar para suas casas e irão viver longe, só uma poderá ficar com o instrumento. Todas são carentes e possuem uma razão para pleitear a posse. A primeira foi quem fabricou, com recursos comuns, a flauta, mas não sabe tocá-la. A segunda reivindica porque possuía semelhante instrumento, que lhe foi furtado, quando começava a aprender a tocá-lo. A terceira quer a flauta porque é a única que realmente sabe tocar, podendo assim desenvolver seu conhecimento. Diante de uma situação destas qualquer tentativa de excluir um dos plausíveis argumentos será totalmente subjetiva. A razão se apresenta assim inevitavelmente parcial e insuficiente para uma tomada de decisão, por mais, que se tente forçar um diálogo em busca do mérito das argumentações. Talvez o máximo que se consiga, num debate deste, é a vitória da performance da retórica ou sobreposição da insistência sobre o cansaço. Ambas situações não possuem qualquer sustentação na construção horizontal de uma racionalidade universal e dialógica (no sentido de encontro amoroso entre os homens). Pelo contrário, representam uma forma de opressão da persuasão ou do ativismo.
Ademais da necessidade de re-des-construir o mito do logos universal e da superioridade do conhecimento intelectual, tão propagado desde positivismo científico de Augusto Comte, por mais que se busque a horizontalidade e a participação na sua construção, é necessário questionar também os limites do diálogo. Num ambiente de múltiplas e, muitas vezes, divergentes racionalidades, como o diálogo pode ser considerado como um encontro amoroso das pessoas¿ O diálogo também não o é quase sempre conflitivo? O que condiciona as posições das pessoas numa relação dialógica são sempre posicionamentos racionais ou, na maioria das vezes, sentimentos (empatias, frustações, traumas, crenças...)? E sendo assim qual o papel dos sentimentos nas relações sociais? Devem estar a reboque, reprimidos e sob controle do logos pretensamente universal? Como equalizar sentimentos subjetivos e razões particulares? Talvez, Freire respondesse com a fé incondicional no radicalismo do ser mais das pessoas. Mas essa fé não é tão só mais uma das muitas expressões políticas culturais possíveis, que, para ter validade, necessariamente deverá ser compartilhada com todos e todas? Vê-la diferente não é manifestação do autoritarismo?
O diálogo, sem sombras de dúvidas, é fundamental na vida social. Através dele podemos nos encontrar, debater, compartilhar pensamentos, trocar e conflitar ideais, mas dificilmente conseguimos chegar a um consenso porque o que nos faz pessoas são nossas diferenças, caso contrário, seriamos simplesmente simulacros sem personalidades, em outras palavras, cópias um dos outros. Nesta condição, o diálogo, pensado nesta inevitável condição agonística, como nos ensina a pesquisadora belga Chantal Mouffe, parte da humilde meta de construir acordos razoáveis, que não necessariamente vão mudar nossa forma de ver o mundo ou superar nossas diferenças, mas vão ser tecidos transparente e intencionalmente para possibilitar nossa tolerância, coabitação e convivência. São cessões que, muitas vezes, ferem nossas convicções e nossa - tão exaltada por Freire – autoconsciência. São decisões diante dos conflitos intransponíveis, baseadas na alteridade e na reciprocidade. Pensar no outro e fazer (exigir) que o outro também pense em nós. E aí podemos encontrar algo bem mais humilde e altero do que o “ser mais” e mais viável do que a crença na razão universal: a razoabilidade da política. Assim a educação é também um ato político, que, além de partilhar conhecimentos, possibilita o respeito e a aceitação de outros conhecimentos que divergem da ciência.
Referências:
FREIRE, Paulo. Educação como prática da liberdade. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1977.
__________. Pedagogia da autonomia. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2000.
__________. Pedagogia do oprimido. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1983.
MARTÍN-BARBERO, Jesús. Ofícios de cartógrafo: travessas latino-americanas da comunicação na cultura. SP: Ed. Loyola, 2004.
MOUFFE, Chantal. O regresso do político. Lisboa: Gradiva, 1986.
SEN, Amartya. A ideia de Justiça. São Paulo: Companhia das Letras, 2011.
Mais tarde no mestrado, construindo a dissertação, me deparo inesperadamente com Freire, quando descobri que minha principal referência, Jesús Martín-Barbero, tinha sido inspirado pelas leituras do educador. Agora, num tempo marcado por profundos sectarismos retorno a leitura de Freire, com sua obra mais densa, “A Pedagogia do Oprimido”. A profundidade da escrita do educador me surpreendeu, principalmente, para um leitor acostumado com seus escritos didáticos. Os conceitos, apresentados neste livro, de horizontalizar a educação, da diferença entre radicalismo e sectarismo e da contextualização a partir dos temas geradores, além de fundamentais, continuam revolucionários. Pouco conseguimos aplica-los não só na sala de aula, mas em nossas vidas sociais e política.
No entanto, minha relação de leitura com Freire é também bem paradoxal. Além de uma repulsa ao reducionismo dialético freiriano (como se obrigatoriamente todos os fenômenos sociais, fossem desenrolados pelo trinômio tese-antítese-síntese), vejo fortes contradições no autor. Ao mesmo tempo que ele tem como princípios o papel crítico, a problematização da realidade, o diálogo e o “ser mais” , Freire apresenta um inevitável autoritarismo na defesa de suas ideias. A autenticidade, o homem como ser da comunicação e o diálogo como um encontro amoroso entre as pessoas são axiomas não questionados em sua escrita. O ser autêntico, que não é definido nem problematizado, serve de critério de reprovação ou aprovação moral de alguns comportamentos descritos. O homem como ser da comunicação e a vocação do “ser mais” são ideias jogadas sem conceitos, sem questionamentos nem oposições. Tudo isso para defender no fim a crença da superioridade e onipresença no conhecimento intelectual e de uma razão universal e verdadeira.
Comecemos a pensar pelo fim: existe um logos-razão universal único que se impõe-sobrepõe-perpassa todas as representações sobre o mundo e as culturas? Como se sustenta essa ideia, se a racionalidade é uma construção social e histórica, condicionada pelos contextos específicos, podendo ter em cada pensamento racional significados, versões, representações e posições singulares, divergentes e não relacionáveis? Tomemos o seguinte exemplo, adaptado a partir do livra “A ideia de Justiça” de Amartya Sen. Três crianças disputam a posse de uma flauta, compartilhada durante uma temporada de férias. Como vão regressar para suas casas e irão viver longe, só uma poderá ficar com o instrumento. Todas são carentes e possuem uma razão para pleitear a posse. A primeira foi quem fabricou, com recursos comuns, a flauta, mas não sabe tocá-la. A segunda reivindica porque possuía semelhante instrumento, que lhe foi furtado, quando começava a aprender a tocá-lo. A terceira quer a flauta porque é a única que realmente sabe tocar, podendo assim desenvolver seu conhecimento. Diante de uma situação destas qualquer tentativa de excluir um dos plausíveis argumentos será totalmente subjetiva. A razão se apresenta assim inevitavelmente parcial e insuficiente para uma tomada de decisão, por mais, que se tente forçar um diálogo em busca do mérito das argumentações. Talvez o máximo que se consiga, num debate deste, é a vitória da performance da retórica ou sobreposição da insistência sobre o cansaço. Ambas situações não possuem qualquer sustentação na construção horizontal de uma racionalidade universal e dialógica (no sentido de encontro amoroso entre os homens). Pelo contrário, representam uma forma de opressão da persuasão ou do ativismo.
Ademais da necessidade de re-des-construir o mito do logos universal e da superioridade do conhecimento intelectual, tão propagado desde positivismo científico de Augusto Comte, por mais que se busque a horizontalidade e a participação na sua construção, é necessário questionar também os limites do diálogo. Num ambiente de múltiplas e, muitas vezes, divergentes racionalidades, como o diálogo pode ser considerado como um encontro amoroso das pessoas¿ O diálogo também não o é quase sempre conflitivo? O que condiciona as posições das pessoas numa relação dialógica são sempre posicionamentos racionais ou, na maioria das vezes, sentimentos (empatias, frustações, traumas, crenças...)? E sendo assim qual o papel dos sentimentos nas relações sociais? Devem estar a reboque, reprimidos e sob controle do logos pretensamente universal? Como equalizar sentimentos subjetivos e razões particulares? Talvez, Freire respondesse com a fé incondicional no radicalismo do ser mais das pessoas. Mas essa fé não é tão só mais uma das muitas expressões políticas culturais possíveis, que, para ter validade, necessariamente deverá ser compartilhada com todos e todas? Vê-la diferente não é manifestação do autoritarismo?
O diálogo, sem sombras de dúvidas, é fundamental na vida social. Através dele podemos nos encontrar, debater, compartilhar pensamentos, trocar e conflitar ideais, mas dificilmente conseguimos chegar a um consenso porque o que nos faz pessoas são nossas diferenças, caso contrário, seriamos simplesmente simulacros sem personalidades, em outras palavras, cópias um dos outros. Nesta condição, o diálogo, pensado nesta inevitável condição agonística, como nos ensina a pesquisadora belga Chantal Mouffe, parte da humilde meta de construir acordos razoáveis, que não necessariamente vão mudar nossa forma de ver o mundo ou superar nossas diferenças, mas vão ser tecidos transparente e intencionalmente para possibilitar nossa tolerância, coabitação e convivência. São cessões que, muitas vezes, ferem nossas convicções e nossa - tão exaltada por Freire – autoconsciência. São decisões diante dos conflitos intransponíveis, baseadas na alteridade e na reciprocidade. Pensar no outro e fazer (exigir) que o outro também pense em nós. E aí podemos encontrar algo bem mais humilde e altero do que o “ser mais” e mais viável do que a crença na razão universal: a razoabilidade da política. Assim a educação é também um ato político, que, além de partilhar conhecimentos, possibilita o respeito e a aceitação de outros conhecimentos que divergem da ciência.
Referências:
FREIRE, Paulo. Educação como prática da liberdade. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1977.
__________. Pedagogia da autonomia. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2000.
__________. Pedagogia do oprimido. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1983.
MARTÍN-BARBERO, Jesús. Ofícios de cartógrafo: travessas latino-americanas da comunicação na cultura. SP: Ed. Loyola, 2004.
MOUFFE, Chantal. O regresso do político. Lisboa: Gradiva, 1986.
SEN, Amartya. A ideia de Justiça. São Paulo: Companhia das Letras, 2011.